MACHADO DE ASSIS NO CINEMA
Quando se procura relacionar o universo ficcional de Machado de Assis com o cinema, poder falar-se de “Machado de Assis e o Cinema” ou de “Machado de Assis no Cinema”. Ao tentar esta breve aproximação optei pela segunda designação, porque a primeira implicava reconhecer que existira algures no tempo uma relação do escritor com o cinema, o que nada me leva a supor ter acontecido. Machado de Assis quanto muito poderá ter assistido, nos derradeiros anos da sua vida, a alguma sessão de cinema mudo numa das várias salas que se inauguraram no Rio de Janeiro, e de que Daniel Piza dá conta na sua biografia “Machado de Assis, Um Génio Brasileiro”. Mas este autor, ao referir-se ao aparecimento destas salas, em data próxima da morte do escritor (1908) cita precisamente: “Os primeiros cinemas, como o Grande Cinematógrafo Parisiense e o Palace, na avenida Central, exibiam filmetes.” E como legenda de uma fotografia refere” O Cine Pathé, fundado por Marc Ferrez, na avenida Central, c. 1908.” Como se vê, surgiam as primeiras salas quando Machado de Assis agonizava nos derradeiros anos da sua vida. Saia pouco, e não consta que frequentasse o cinematógrafo. Mesmo que o tivesse feito, uma ou duas vezes, para matar a curiosidade da novidade, nunca o poderia ter feito muito antes, logo nunca antes de escrever o conjunto das suas obras-mestras, que se situam entre “Memórias Póstumas de Braz Cubas” (1881) e “Dom Casmurro” (1899).
Mas há uma ou outra referência curiosa e de reter. Veja-se, por exemplo, a que aparece num site da Internet, “Memórias Cinematográficas de Machado de Assis”, onde se lê: “Entretanto, se a ascensão de uma sociedade moderna o interessou à medida que alterava o modo como as pessoas pensavam e se relacionavam, os aspectos exteriores, mais visíveis, não foram objecto de sua excitação, ao contrário do que aconteceu a outros cronistas da época. Machado conviveu, em seus últimos doze anos de vida, com a existência do cinema na cidade do Rio de Janeiro, mas a sétima arte não lhe despertou qualquer interesse.” Isso mesmo parece ser confirmado, e ampliado, no estudo “O Cinema e Machado”, de Hernani Heffner, de que cito as seguintes passagens que começam por situar Machado de Assis como cronista: “ É sabido que Machado de Assis tratou tudo com fina e ferina ironia. É menos comentado que sempre considerou algo bem menor as atracções de feira, os espectáculos de lazer eventual, os maquinismos destinados à mera distracção, espaço onde, em princípio, deveria se encaixar o cinema. Tais experiências – ele parecia se referir a elas mais como teratologias – estavam destinadas a enganar o vulgo e a revelar seus baixos instintos. Na verdade, a caracterizar o povo como crédulo em excesso, para além da desprezível ignorância habitual.
O cinema não se tornou uma novidade passageira, mas Machado assim parece tê-lo tratado até o fim da vida. Diga-se a seu favor que sua carreira de cronista se encerrou antes que as imagens em movimento tivessem uma presença mais destacada na vida da cidade: em 1897, de forma mais quotidiana, e, por volta de 1904, de forma mais definitiva, quando Carolina morreu. Mesmo assim, como artista sensível e como bom leitor, sabia que a novidade tinha vindo para ficar. Assim, seu interesse episódico e lateral pelo cinema não parece caracterizar só o desprezo pelas engenhocas que constituíam o tímido panis et circenses local.” Hernani Heffner sugere então que o escritor brasileiro não desconfiava apenas de mais um logro técnico, mas sobretudo “de uma ameaça à hegemonia da literatura no comércio das ideias e das emoções”, (…) “pelo impacto da imagem em movimento como expressão de verdade do mundo, associada justamente a esta origem pouco nobre.”
“Um conhecedor de Shakespeare como Machado sabia que o cinema não alteraria significativamente o sentido da vida. O cinema como forma de expressão talvez tivesse acuado um pouco o escritor em seus temores não revelados, mas não a ponto de empanar seus vaticínios. Daí talvez seu desprezo displicente. Uma atitude cobrada por Paulo Emílio Sales Gomes em sua crítica aos intelectuais brasileiros por ignorarem o cinema brasileiro por décadas e décadas, desde o começo.”
Fica assim bem provado que as relações de Machado de Assis com as salas de cinema, foram nulas, ou quase e, se existiram, não terão sido propriamente de cumplicidade e encantamento, como um pouco mais tarde iria acontecer com os surrealistas. Confirmámos portanto que não houve nenhuma influência possível do cinema na escrita de Machado de Assis, mas apenas “premonições”, se assim se podem chamar. Mas notam-se outras “premonições” na arte deste escritor enorme. Atrevendo-me a entrar por território alheio, apenas com um olhar de leitor interessado, não com o do crítico ou ensaísta literário, interrogo-me sobre onde pára a influência romântica do autor de “Helena” e onde começa a opção realista do escritor de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Acontece que esta descontinuidade estilística entre estes dois romances é evidente, como também é clara a continuidade entre ambas. Nem Machado de Assis deixou de ser “romântico” de um dia para o outro, nem passou a ser um “realista” exemplar. O que mais me espanta, hoje em dia, na escrita de Machado de Assis, sobretudo a partir de “Memórias Póstumas”, é a multiplicidade de registos que o colocam como um ainda romântico nalguns aspectos, um realista em plena maturidade, mas igualmente um modernista “avant-la-letre”, um surrealista, um concretista, um vanguardista, enfim, também um homem que alguns cuidam ser um irremediável moralista conservador, mas que eu sinto mais um militante de valores morais caídos em desuso, ou um critico da condição humana que não é tão elogiável na sua totalidade como seria de desejar, corrompida pela eterna hipocrisia, pela omnipresente corrupção, pelo viciante carreirismo, pela falta de verdade e de hombridade. Para Machado de Assis a Humanidade é, sempre o foi para trás, e não parece mudar muito no futuro, uma realidade que merece não muita credibilidade, pouca simpatia e muita desconfiança quanto aos seus propósitos mais íntimos. Céptico, pessimista, escritor de uma sibilina ironia, extremamente subtil, mas ferozmente observadora, Machado de Assis capta aí muita da simpatia do público do século XXI. Igualmente descrente e pessimista quanto ao futuro da espécie.
Mas, atenção, a existência é uma contradição insistente: lendo Machado de Assis percebe-se que, para lá do seu ingénito pessimismo e cepticismo, há uma devoradora vontade de viver, um gosto pelos prazeres da vida que é visível em qualquer das suas páginas. Podemos estar muito incrédulos em relação ao Homem, mas lendo Machado de Assis não podemos deixar de glorificar a sua arte, afinal resultado de um “humano”. Lendo as suas descrições, não deixaremos de nos seduzir pelo olhar “obliquo e dissimulado” de Capitu, pelas ruas do Rio de Janeiro, entre as quais a de Matacavalos, pelas jantaradas, pelos bailes, pelas travessias das noites e dos dias tropicais, pelo urbanismo de metrópole, pela densidades das personagens que se não esquecem. Afinal por esta Humanidade frágil que, não sendo perfeita, longe disso, não deixa de ser sedutoramente apetecível. Ler Machado de Assis é ler alguém que nos dá ganas de viver, mas muita vontade de lutar contra o que está mal, e tentar modificar, pouco que seja, o que estiver ao nosso alcance.
Posto isto, se alguma relação existe entre a narrativa literária de Machado de Assis e a cinematográfica, será pura coincidência, ou premonição, como o escrevi atrás. Logo, as afinidades de “Machado de Assis e o Cinema” só poderão ser de sentido único: ser a escrita do escritor a influenciar o cinema, ou algum cinema. O que, a acontecer, só se verificaria muito mais tarde.
Mas há aspectos muito curiosos a salientar neste aspecto. Na verdade, sobretudo desde “Memórias Póstumas de Braz Cubas”, o tal romance que introduziu uma ruptura na literatura brasileira (e não só), rompendo com o romantismo e introduzindo um realismo de sabor muito próprio, onde se descobrem já indícios de algum modernismo, prenúncios de um certo surrealismo, sólidos apontamentos de um romance moderno, surgem na prosa de Machado de Assis algumas novidades estilísticas que devem muito a uma escrita realista, concreta, de descrição sucinta, que quase se pode associar à chamada “sequência literária”, “planificação”, “guião” (ou “roteiro”, na terminologia brasileira) de um filme. Abraça-se o capítulo 45, de “Memórias Póstumas de Braz Cubas”, que tem por título “Notas” e leia-se:
“Soluços, lágrimas, casa armada, veludo preto nos portais, um homem que veio vestir o cadáver, outro que tomou a medida do caixão, caixão, essa, tocheiros, convites, convidados que entravam. Lentamente, a passo surdo, e apertavam a mão à família, alguns tristes, todos sérios e calados, padre e sacristão, rezas, aspersões d’água benta, o fechar do caixão a prego e martelo, seis pessoas que o tomam da essa, e o levantam, e o descem a custo pela escada, não obstante os gritos, soluços e novas lágrimas da família, e vão até o coche fúnebre, e o colocam em cima e traspassam e apertam as correias, o rodar do coche, o rodar dos carros, um a um... Isto que parece um simples inventário, eram notas que eu havia tomado para um capítulo triste e vulgar que não escrevo.”
O escritor tem a noção de que não escreveu “um capítulo”, mas que tomou notas, “um simples inventário”. “Notas para um capítulo”. Que outra coisa é um guião cinematográfico senão notas para um filme? Mas um “inventário” que é uma sucessão de imagens de tal forma forte que todo o velório e sucessivo enterro nos é dado numa sequência que é ela própria uma montagem cinematográfica.
Há muito de cinematográfico na escrita de Machado de Assis. Se tempo houvera para tal aqui vos poderia trazer exemplos de “flash backs”, de “montages” (aquelas sequências de montagem muito rápida, que dão a passagem do tempo e do espaço: uma companhia de circo ou de teatro em itinerância, rolando por diversas localidades), de vários tipos de montagem literária que remetem para montagens cinematográficas, por ruptura, pela súbita introdução de uma narrador que se dirige ao leitor/espectador, pela acumulação de sons, pela justaposição de ideias, de situações, idênticas, contrárias, enfim um não acabar de sugestões imagéticas que Machado de Assis usa magistralmente na sua literatura e que anos depois muitos, senão todos, de uma maneira ou de outra, utilizaram nos seus filmes. Influência directa? Não creio, obviamente. Apenas é interessante referir que muito do que hoje se chama “narrativa cinematográfica” já pré-existia à invenção do cinema e que Machado da Assis foi decisivamente um dos seus mais criativos cultores. O que torna não apenas provável, mas absolutamente credível, uma influência indirecta deste escritor em cineastas que o leram e o admiram. Ao ler Machado de Assis é impossível não se ficar impregnado pela sua criatividade estilística, pela sua modernidade de recursos, pela liberdade total da sua escrita. Fatal é que essa construção fique a larvar no cérebro e se reflicta em futuras obras. Afinal nada de novo existe. A criação artística não é mais do que baralhar e dar de novo o que previamente absorvemos, com resultados mais ou menos brilhantes consoante a força da personalidade que o restitui aos leitores, ouvintes ou espectadores.
Neste aspecto acho que todos os que passaram pelas páginas de Machado de Assis são seus devedores. Que o diga Woody Allen, quando em 1996, questionado por um jornalista brasileiro, sobre “se já tivera algum ídolo brasileiro, na área do futebol?”, respondeu, depois de uma pausa para pensar, - “Ídolo brasileiro? Há pouco tempo, li Machado de Assis. Achei que é um escritor excepcional. Uma amiga ofereceu-me um livro de Machado de Assis- “Epitaph for a Small Winner” (tradução em inglês de “Memórias Póstumas de Brás Cubas’). Fiquei muito, muito impressionado. (…) Achei Machado de Assis excepcionalmente espirituoso, dono de uma perspectiva sofisticada e contemporânea, o que é não é comum, já que o livro foi escrito há tantos anos. Fiquei muito surpreso. É muito sofisticado, divertido, irónico. Alguns dirão: ele é cínico. Eu diria que Machado de Assis é realista.”
O jornalista, patrioticamente entusiasmado, pergunta-lhe logo se estava a pensar adaptar o romance, ao que Woody Allen, inteligentemente, responde: “Gosto de escrever os meus próprios filmes. Mas Machado de Assis é um momento maravilhoso na literatura. Dei cópias do livro para a minha filha e para os meus amigos.”
Este “fait divert”, citado quase sempre que se fala de “Machado de Assis no Cinema”, tem duas interpretações mais ou menos lógicas. A primeira, de que a qualidade de escrita deste escritor de meados-fins do século XIX, continua viva e a entusiasmar muita gente. A segunda, que a arte de Machado de Assis é muito difícil de adaptar ao cinema, o que, não desculpa, mas atenua, o falhanço de boa parte das adaptações cinematográficas de obras suas conhecidas.
Mas então digo-me e desdigo-me? Afirmo-o muito cinematográfico no estilo, e depois digo-o difícil de adaptar. Aparentemente poderá haver uma incompatibilidade, mas creio não existir. Há muito de cinematográfico na escrita e nos recursos estilísticos de Machado de Assis, é verdade. Mas o seu húmus não é muito facilmente adaptável. Machado de Assis é um pessimista, um céptico, um moralista desiludido, um filósofo que ficciona situações para sobre elas discorrer. As situações são facilmente adaptáveis. A ironia, o cepticismo, a filosofia (quer seja o “Humanitismo”, de Quincas Borba, quer o próprio pensamento de Machado de Assis e o seu frequente apelo a uma análise psicológica das personagens), dificilmente o são.
Muitas foram as abordagens cinematográficas da obra de Machado de Assis, mas poucas as eleitas. A maioria são falhanços, alguns imensos. Há mesmo, machadistas radicais que, por causa deles, recusam toda a tentativa de adaptação à nova arte das imagens e dos sons.
Mas concretizemos algumas refereências:.
Parece que a primeira adaptação de uma obra de Machado de Assis data de 1937, chamava-se “A Agulha e a Linha” e resumia-se á filmagem de uma peça pelo Instituto Nacional do Cinema Educativo do Brasil. A primeira obra realmente interessante terá sido a do mestre brasileiro do cinema mudo, Humberto Mauro, “Um Apólogo - Machado de Assis”, realizado por ocasião do centenário de nascimento de Machado de Assis, em 1939, misturando biografia e uma nova adaptação de “A Agulha e a Linha”.
Recorde-se que existe uma interpretação da figura de Machado de Assis num filme de um cineasta português, Leitão de Barros, numa co-produção luso-brasileira de 1949, chamada “Vendaval Maravilhoso”, contando “a vida agitada e trágica de Castro Alves, desde o seu nascimento, em 1847, à luta contra a escravatura como estudante de Direito e como poeta, mostrando, também, como o sua relação com a actriz Eugénia Câmara, grande amor de sua vida, que acaba por o levar à ruína. Neste enredo romântico mal recebido na época por crítica e público, e quase desconhecida em Portugal, surge Machado de Assis, numa interpretação de Jaime Santos. Com música de João Nobre, Eugénia Câmara e Raul Ferrão, “Vendaval Maravilhoso” contava no elenco com Paulo Maurício (Castro Alves) e Amália Rodrigues (Eugénia Câmara), além de Barreto Poeira, Edmundo Lopes, Maria Albertina e do já referido Jaime Santos.
Há depois a referir muitos documentários sobre a vida do escritor, a sua obra e inclusive sobre o Rio de Machado de Assis. Neste mesmo Encontro passaram hoje de manhã dois títulos produzidos por instituições prestigiadas, o Senado Brasileiro e a Academia Brasileiras das Letras, que permitem uma boa aproximação do universo machadiano, respectivamente “Alma Curiosa de Perfeição”, de Maria Maia, e “Machado de Assis – o Filme”, de Luelane Corrêa, onde se cruzaram imagens do tempo e do lugar de Machado de Assis com depoimentos de estudiosos e especialistas da personalidade e da obra do escritor. Houve mesmo a oportunidade, no primeiro destes títulos, de ver e ouvir trechos do autor na voz clara e apaixonada do nosso anfitrião neste Encontro, o embaixador Lauro Moreira.
Um projecto interessante, rodado para televisão, é “O Rio de Machado de Assis”, de 1990, produção de Norma Bengell, numa realização de Sónia Nercessian e Kika Lopes, com Paulo José, Fernanda Torres, José de Abreu, Tonico Pereira. É uma série de três filmes que procuram apresentar o Rio de Janeiro sob a perspectiva das obras e dos personagens de Machado de Assis. As filmagens decorreram em construções históricas do Rio de Janeiro, como a Casa de Osório, na Rua Riachuelo (antiga Rua Mata-Cavalos), e o casario da Av. Mem de Sá. Curiosamente já em 1965 “O Rio de Machado de Assis” fora nome de filme, desta vez escrito e realizado por Nelson Pereira dos Santos.
Obviamente que a televisão não podia ficar arredada da obra daquele que é considerado um dos, ou mesmo o maior escritor de toda a literatura brasileira. Mas não foram muitas as versões televisivas, apesar de tudo.
A romântica “Helena” foi adaptada a novela por Gilberto Braga, com direcção de Herval Rossano, e um elenco numeroso, Lúcia Alves, Osmar Prado, Ida Gomes, Rogério Fróes, Ruth de Sousa, Sidney Marques,Regina Vianna, Gilberto Salvio, Ângela Valério, José Augusto Branco.
“O Alienista” serviu para mini-série da rede Globo,em 1993, interpretada por Marco Nanini, Giulia Gam, Milton Gonçalves, Cláudio Correa e Castro, Antônio Calloni, Marisa Orth, Sérgio Manberti, e Luís Fernando Guimarães. Outra mini-série, seria “Trio em Lá Menor” (segundo conto homónimo), produzida em 1999 por Wolf Maia e realizada por Luciano Sabino, com adaptação de Geraldo Carneiro para a Central Globo de Produção. No elenco contam-se os nomes de Elenco: Letícia Sabatella, Leonardo Brício, Marco Ricca, Laura Cardoso, Bel Kutner.
Voltando ao cinema e às adaptações de obras, há a considerar dezenas de filmes, mas só alguns merecem ser recordados. Pelo menos bem recordados. Nas ficções de longa-metragem, surgem a valer a pena ser mencionados:
“Noite de Almirante” (1961), de Carlos Hugo Christiansen, segundo o conto homónimo, episódio de “Esse Rio que eu Amo”,
“Viagem ao Fim do Mundo” (1967), de Fernando Cony Campos, baseado em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”,
“Capitu” (1967), de Paulo Cesar Saraceni, conforme o romance “Dom Casmurro”,
“Azyllo Muito Louco” (1969), do excelente Nelson Pereira dos Santos, colocando em imagens “O Alienista”,
“A Cartomante” (1974), de Marcos Farias, baseado no conto homónimo,
“O Homem Célebre” (1974), de Miguel Faria Jr, apoiado no conto homónimo,
“Confissões de uma Viúva Moça” (1976), de Adnor Pitanga,
“Iaiá Garcia” (1977), de Geraldo Vietri, baseado no romance homónimo,
“Missa do Galo” (1982), de Nelson Pereira dos Santos, igualmente retirado de um conto homónimo,
“Brás Cubas” (1985), do polémico Júlio Bressane, um grande admirador de Machado de Assis, que, aliás, prepara neste momento uma nova adaptação de um outra obra de Machado de Assis,
“Quincas Borba” (1986), de Roberto Santos,
“A Causa Secreta” (1995), de Sergio Bianchi, baseado no conto homónimo,
“Memórias Póstumas” (2001), de André Klotzel, que irão ver seguidamente, com um elenco desigual de que fazem parte Reginaldo Faria, Sônia Braga, Walmor Chagas, Stepan Nercessian, Petrônio Gontijo, Viétia Rocha.
As duas mais recentes adaptações, “Dom” (2003), de Moacyr Góes, e “A Cartomante” (2004), de Wagner de Assis e Pablo Uranga, ficam muito longe do sofrível.
Finalmente umas rápidas palavras sobre o filme que irão ver já de seguida. “Memórias Póstumas”, de André Klotzel, aceita-se como uma adaptação digna e inteligente do torrencial fabulário de Machado de Assis. Estas “Memórias”, não “de um defunto escritor, mas de um escritor defunto” são objectivamente difíceis de adaptar, já por serem recordadas na primeira pessoa do singular, já por conterem muito de intimista e de secreto que coloca delicados problemas de transposição, já ainda por se expressarem em discursos descontínuos, em estilos diversos, introduzindo constantes rupturas, remetendo para uma ironia fina e subtil. Mas André Klotzel consegue dar uns laivos da arte de Machado, ou, pelo menos, consegue transmitir ao espectador o desejo de ler o original. A reconstituição de época assegura alguma verosimilhança ainda que não raro se fique pelo decorativismo. Falta alguma densidade “vivida” aos “quadros” apresentados. Mais deficiente é a representação, onde apenas Sónia Braga, numa pequena aparição, e Reginaldo Faria, na composição de Brás Cubas, “defunto escritor”, se impõem num elenco não muito entusiasmante. Obviamente que, não sendo um filme desdenhável, não é ainda a obra que Machado de Assis justifica. Mas é, ainda assim, uma das melhores aproximações do universo deste caminhante que atravessou o século XIX brasileiro atravessando almas e palmilhando ruas com uma argúcia de psicólogo e uma atenção voraz de caçador de borboletas. Delicado, mágico, expectante, directo e decisivo na estocada. O Brasil deve-lhe a perpetuação da sua alma, a língua portuguesa coloca-o entre os seus maiores cultores, a Humanidade ficou definitivamente muito mais rica, e mais apetecível, com as suas introspecções e as agudas dissecações das suas personagens. O seu cepticismo é a nossa esperança.
Mas há uma ou outra referência curiosa e de reter. Veja-se, por exemplo, a que aparece num site da Internet, “Memórias Cinematográficas de Machado de Assis”, onde se lê: “Entretanto, se a ascensão de uma sociedade moderna o interessou à medida que alterava o modo como as pessoas pensavam e se relacionavam, os aspectos exteriores, mais visíveis, não foram objecto de sua excitação, ao contrário do que aconteceu a outros cronistas da época. Machado conviveu, em seus últimos doze anos de vida, com a existência do cinema na cidade do Rio de Janeiro, mas a sétima arte não lhe despertou qualquer interesse.” Isso mesmo parece ser confirmado, e ampliado, no estudo “O Cinema e Machado”, de Hernani Heffner, de que cito as seguintes passagens que começam por situar Machado de Assis como cronista: “ É sabido que Machado de Assis tratou tudo com fina e ferina ironia. É menos comentado que sempre considerou algo bem menor as atracções de feira, os espectáculos de lazer eventual, os maquinismos destinados à mera distracção, espaço onde, em princípio, deveria se encaixar o cinema. Tais experiências – ele parecia se referir a elas mais como teratologias – estavam destinadas a enganar o vulgo e a revelar seus baixos instintos. Na verdade, a caracterizar o povo como crédulo em excesso, para além da desprezível ignorância habitual.
O cinema não se tornou uma novidade passageira, mas Machado assim parece tê-lo tratado até o fim da vida. Diga-se a seu favor que sua carreira de cronista se encerrou antes que as imagens em movimento tivessem uma presença mais destacada na vida da cidade: em 1897, de forma mais quotidiana, e, por volta de 1904, de forma mais definitiva, quando Carolina morreu. Mesmo assim, como artista sensível e como bom leitor, sabia que a novidade tinha vindo para ficar. Assim, seu interesse episódico e lateral pelo cinema não parece caracterizar só o desprezo pelas engenhocas que constituíam o tímido panis et circenses local.” Hernani Heffner sugere então que o escritor brasileiro não desconfiava apenas de mais um logro técnico, mas sobretudo “de uma ameaça à hegemonia da literatura no comércio das ideias e das emoções”, (…) “pelo impacto da imagem em movimento como expressão de verdade do mundo, associada justamente a esta origem pouco nobre.”
“Um conhecedor de Shakespeare como Machado sabia que o cinema não alteraria significativamente o sentido da vida. O cinema como forma de expressão talvez tivesse acuado um pouco o escritor em seus temores não revelados, mas não a ponto de empanar seus vaticínios. Daí talvez seu desprezo displicente. Uma atitude cobrada por Paulo Emílio Sales Gomes em sua crítica aos intelectuais brasileiros por ignorarem o cinema brasileiro por décadas e décadas, desde o começo.”
Fica assim bem provado que as relações de Machado de Assis com as salas de cinema, foram nulas, ou quase e, se existiram, não terão sido propriamente de cumplicidade e encantamento, como um pouco mais tarde iria acontecer com os surrealistas. Confirmámos portanto que não houve nenhuma influência possível do cinema na escrita de Machado de Assis, mas apenas “premonições”, se assim se podem chamar. Mas notam-se outras “premonições” na arte deste escritor enorme. Atrevendo-me a entrar por território alheio, apenas com um olhar de leitor interessado, não com o do crítico ou ensaísta literário, interrogo-me sobre onde pára a influência romântica do autor de “Helena” e onde começa a opção realista do escritor de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Acontece que esta descontinuidade estilística entre estes dois romances é evidente, como também é clara a continuidade entre ambas. Nem Machado de Assis deixou de ser “romântico” de um dia para o outro, nem passou a ser um “realista” exemplar. O que mais me espanta, hoje em dia, na escrita de Machado de Assis, sobretudo a partir de “Memórias Póstumas”, é a multiplicidade de registos que o colocam como um ainda romântico nalguns aspectos, um realista em plena maturidade, mas igualmente um modernista “avant-la-letre”, um surrealista, um concretista, um vanguardista, enfim, também um homem que alguns cuidam ser um irremediável moralista conservador, mas que eu sinto mais um militante de valores morais caídos em desuso, ou um critico da condição humana que não é tão elogiável na sua totalidade como seria de desejar, corrompida pela eterna hipocrisia, pela omnipresente corrupção, pelo viciante carreirismo, pela falta de verdade e de hombridade. Para Machado de Assis a Humanidade é, sempre o foi para trás, e não parece mudar muito no futuro, uma realidade que merece não muita credibilidade, pouca simpatia e muita desconfiança quanto aos seus propósitos mais íntimos. Céptico, pessimista, escritor de uma sibilina ironia, extremamente subtil, mas ferozmente observadora, Machado de Assis capta aí muita da simpatia do público do século XXI. Igualmente descrente e pessimista quanto ao futuro da espécie.
Mas, atenção, a existência é uma contradição insistente: lendo Machado de Assis percebe-se que, para lá do seu ingénito pessimismo e cepticismo, há uma devoradora vontade de viver, um gosto pelos prazeres da vida que é visível em qualquer das suas páginas. Podemos estar muito incrédulos em relação ao Homem, mas lendo Machado de Assis não podemos deixar de glorificar a sua arte, afinal resultado de um “humano”. Lendo as suas descrições, não deixaremos de nos seduzir pelo olhar “obliquo e dissimulado” de Capitu, pelas ruas do Rio de Janeiro, entre as quais a de Matacavalos, pelas jantaradas, pelos bailes, pelas travessias das noites e dos dias tropicais, pelo urbanismo de metrópole, pela densidades das personagens que se não esquecem. Afinal por esta Humanidade frágil que, não sendo perfeita, longe disso, não deixa de ser sedutoramente apetecível. Ler Machado de Assis é ler alguém que nos dá ganas de viver, mas muita vontade de lutar contra o que está mal, e tentar modificar, pouco que seja, o que estiver ao nosso alcance.
Posto isto, se alguma relação existe entre a narrativa literária de Machado de Assis e a cinematográfica, será pura coincidência, ou premonição, como o escrevi atrás. Logo, as afinidades de “Machado de Assis e o Cinema” só poderão ser de sentido único: ser a escrita do escritor a influenciar o cinema, ou algum cinema. O que, a acontecer, só se verificaria muito mais tarde.
Mas há aspectos muito curiosos a salientar neste aspecto. Na verdade, sobretudo desde “Memórias Póstumas de Braz Cubas”, o tal romance que introduziu uma ruptura na literatura brasileira (e não só), rompendo com o romantismo e introduzindo um realismo de sabor muito próprio, onde se descobrem já indícios de algum modernismo, prenúncios de um certo surrealismo, sólidos apontamentos de um romance moderno, surgem na prosa de Machado de Assis algumas novidades estilísticas que devem muito a uma escrita realista, concreta, de descrição sucinta, que quase se pode associar à chamada “sequência literária”, “planificação”, “guião” (ou “roteiro”, na terminologia brasileira) de um filme. Abraça-se o capítulo 45, de “Memórias Póstumas de Braz Cubas”, que tem por título “Notas” e leia-se:
“Soluços, lágrimas, casa armada, veludo preto nos portais, um homem que veio vestir o cadáver, outro que tomou a medida do caixão, caixão, essa, tocheiros, convites, convidados que entravam. Lentamente, a passo surdo, e apertavam a mão à família, alguns tristes, todos sérios e calados, padre e sacristão, rezas, aspersões d’água benta, o fechar do caixão a prego e martelo, seis pessoas que o tomam da essa, e o levantam, e o descem a custo pela escada, não obstante os gritos, soluços e novas lágrimas da família, e vão até o coche fúnebre, e o colocam em cima e traspassam e apertam as correias, o rodar do coche, o rodar dos carros, um a um... Isto que parece um simples inventário, eram notas que eu havia tomado para um capítulo triste e vulgar que não escrevo.”
O escritor tem a noção de que não escreveu “um capítulo”, mas que tomou notas, “um simples inventário”. “Notas para um capítulo”. Que outra coisa é um guião cinematográfico senão notas para um filme? Mas um “inventário” que é uma sucessão de imagens de tal forma forte que todo o velório e sucessivo enterro nos é dado numa sequência que é ela própria uma montagem cinematográfica.
Há muito de cinematográfico na escrita de Machado de Assis. Se tempo houvera para tal aqui vos poderia trazer exemplos de “flash backs”, de “montages” (aquelas sequências de montagem muito rápida, que dão a passagem do tempo e do espaço: uma companhia de circo ou de teatro em itinerância, rolando por diversas localidades), de vários tipos de montagem literária que remetem para montagens cinematográficas, por ruptura, pela súbita introdução de uma narrador que se dirige ao leitor/espectador, pela acumulação de sons, pela justaposição de ideias, de situações, idênticas, contrárias, enfim um não acabar de sugestões imagéticas que Machado de Assis usa magistralmente na sua literatura e que anos depois muitos, senão todos, de uma maneira ou de outra, utilizaram nos seus filmes. Influência directa? Não creio, obviamente. Apenas é interessante referir que muito do que hoje se chama “narrativa cinematográfica” já pré-existia à invenção do cinema e que Machado da Assis foi decisivamente um dos seus mais criativos cultores. O que torna não apenas provável, mas absolutamente credível, uma influência indirecta deste escritor em cineastas que o leram e o admiram. Ao ler Machado de Assis é impossível não se ficar impregnado pela sua criatividade estilística, pela sua modernidade de recursos, pela liberdade total da sua escrita. Fatal é que essa construção fique a larvar no cérebro e se reflicta em futuras obras. Afinal nada de novo existe. A criação artística não é mais do que baralhar e dar de novo o que previamente absorvemos, com resultados mais ou menos brilhantes consoante a força da personalidade que o restitui aos leitores, ouvintes ou espectadores.
Neste aspecto acho que todos os que passaram pelas páginas de Machado de Assis são seus devedores. Que o diga Woody Allen, quando em 1996, questionado por um jornalista brasileiro, sobre “se já tivera algum ídolo brasileiro, na área do futebol?”, respondeu, depois de uma pausa para pensar, - “Ídolo brasileiro? Há pouco tempo, li Machado de Assis. Achei que é um escritor excepcional. Uma amiga ofereceu-me um livro de Machado de Assis- “Epitaph for a Small Winner” (tradução em inglês de “Memórias Póstumas de Brás Cubas’). Fiquei muito, muito impressionado. (…) Achei Machado de Assis excepcionalmente espirituoso, dono de uma perspectiva sofisticada e contemporânea, o que é não é comum, já que o livro foi escrito há tantos anos. Fiquei muito surpreso. É muito sofisticado, divertido, irónico. Alguns dirão: ele é cínico. Eu diria que Machado de Assis é realista.”
O jornalista, patrioticamente entusiasmado, pergunta-lhe logo se estava a pensar adaptar o romance, ao que Woody Allen, inteligentemente, responde: “Gosto de escrever os meus próprios filmes. Mas Machado de Assis é um momento maravilhoso na literatura. Dei cópias do livro para a minha filha e para os meus amigos.”
Este “fait divert”, citado quase sempre que se fala de “Machado de Assis no Cinema”, tem duas interpretações mais ou menos lógicas. A primeira, de que a qualidade de escrita deste escritor de meados-fins do século XIX, continua viva e a entusiasmar muita gente. A segunda, que a arte de Machado de Assis é muito difícil de adaptar ao cinema, o que, não desculpa, mas atenua, o falhanço de boa parte das adaptações cinematográficas de obras suas conhecidas.
Mas então digo-me e desdigo-me? Afirmo-o muito cinematográfico no estilo, e depois digo-o difícil de adaptar. Aparentemente poderá haver uma incompatibilidade, mas creio não existir. Há muito de cinematográfico na escrita e nos recursos estilísticos de Machado de Assis, é verdade. Mas o seu húmus não é muito facilmente adaptável. Machado de Assis é um pessimista, um céptico, um moralista desiludido, um filósofo que ficciona situações para sobre elas discorrer. As situações são facilmente adaptáveis. A ironia, o cepticismo, a filosofia (quer seja o “Humanitismo”, de Quincas Borba, quer o próprio pensamento de Machado de Assis e o seu frequente apelo a uma análise psicológica das personagens), dificilmente o são.
Muitas foram as abordagens cinematográficas da obra de Machado de Assis, mas poucas as eleitas. A maioria são falhanços, alguns imensos. Há mesmo, machadistas radicais que, por causa deles, recusam toda a tentativa de adaptação à nova arte das imagens e dos sons.
Mas concretizemos algumas refereências:.
Parece que a primeira adaptação de uma obra de Machado de Assis data de 1937, chamava-se “A Agulha e a Linha” e resumia-se á filmagem de uma peça pelo Instituto Nacional do Cinema Educativo do Brasil. A primeira obra realmente interessante terá sido a do mestre brasileiro do cinema mudo, Humberto Mauro, “Um Apólogo - Machado de Assis”, realizado por ocasião do centenário de nascimento de Machado de Assis, em 1939, misturando biografia e uma nova adaptação de “A Agulha e a Linha”.
Recorde-se que existe uma interpretação da figura de Machado de Assis num filme de um cineasta português, Leitão de Barros, numa co-produção luso-brasileira de 1949, chamada “Vendaval Maravilhoso”, contando “a vida agitada e trágica de Castro Alves, desde o seu nascimento, em 1847, à luta contra a escravatura como estudante de Direito e como poeta, mostrando, também, como o sua relação com a actriz Eugénia Câmara, grande amor de sua vida, que acaba por o levar à ruína. Neste enredo romântico mal recebido na época por crítica e público, e quase desconhecida em Portugal, surge Machado de Assis, numa interpretação de Jaime Santos. Com música de João Nobre, Eugénia Câmara e Raul Ferrão, “Vendaval Maravilhoso” contava no elenco com Paulo Maurício (Castro Alves) e Amália Rodrigues (Eugénia Câmara), além de Barreto Poeira, Edmundo Lopes, Maria Albertina e do já referido Jaime Santos.
Há depois a referir muitos documentários sobre a vida do escritor, a sua obra e inclusive sobre o Rio de Machado de Assis. Neste mesmo Encontro passaram hoje de manhã dois títulos produzidos por instituições prestigiadas, o Senado Brasileiro e a Academia Brasileiras das Letras, que permitem uma boa aproximação do universo machadiano, respectivamente “Alma Curiosa de Perfeição”, de Maria Maia, e “Machado de Assis – o Filme”, de Luelane Corrêa, onde se cruzaram imagens do tempo e do lugar de Machado de Assis com depoimentos de estudiosos e especialistas da personalidade e da obra do escritor. Houve mesmo a oportunidade, no primeiro destes títulos, de ver e ouvir trechos do autor na voz clara e apaixonada do nosso anfitrião neste Encontro, o embaixador Lauro Moreira.
Um projecto interessante, rodado para televisão, é “O Rio de Machado de Assis”, de 1990, produção de Norma Bengell, numa realização de Sónia Nercessian e Kika Lopes, com Paulo José, Fernanda Torres, José de Abreu, Tonico Pereira. É uma série de três filmes que procuram apresentar o Rio de Janeiro sob a perspectiva das obras e dos personagens de Machado de Assis. As filmagens decorreram em construções históricas do Rio de Janeiro, como a Casa de Osório, na Rua Riachuelo (antiga Rua Mata-Cavalos), e o casario da Av. Mem de Sá. Curiosamente já em 1965 “O Rio de Machado de Assis” fora nome de filme, desta vez escrito e realizado por Nelson Pereira dos Santos.
Obviamente que a televisão não podia ficar arredada da obra daquele que é considerado um dos, ou mesmo o maior escritor de toda a literatura brasileira. Mas não foram muitas as versões televisivas, apesar de tudo.
A romântica “Helena” foi adaptada a novela por Gilberto Braga, com direcção de Herval Rossano, e um elenco numeroso, Lúcia Alves, Osmar Prado, Ida Gomes, Rogério Fróes, Ruth de Sousa, Sidney Marques,Regina Vianna, Gilberto Salvio, Ângela Valério, José Augusto Branco.
“O Alienista” serviu para mini-série da rede Globo,em 1993, interpretada por Marco Nanini, Giulia Gam, Milton Gonçalves, Cláudio Correa e Castro, Antônio Calloni, Marisa Orth, Sérgio Manberti, e Luís Fernando Guimarães. Outra mini-série, seria “Trio em Lá Menor” (segundo conto homónimo), produzida em 1999 por Wolf Maia e realizada por Luciano Sabino, com adaptação de Geraldo Carneiro para a Central Globo de Produção. No elenco contam-se os nomes de Elenco: Letícia Sabatella, Leonardo Brício, Marco Ricca, Laura Cardoso, Bel Kutner.
Voltando ao cinema e às adaptações de obras, há a considerar dezenas de filmes, mas só alguns merecem ser recordados. Pelo menos bem recordados. Nas ficções de longa-metragem, surgem a valer a pena ser mencionados:
“Noite de Almirante” (1961), de Carlos Hugo Christiansen, segundo o conto homónimo, episódio de “Esse Rio que eu Amo”,
“Viagem ao Fim do Mundo” (1967), de Fernando Cony Campos, baseado em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”,
“Capitu” (1967), de Paulo Cesar Saraceni, conforme o romance “Dom Casmurro”,
“Azyllo Muito Louco” (1969), do excelente Nelson Pereira dos Santos, colocando em imagens “O Alienista”,
“A Cartomante” (1974), de Marcos Farias, baseado no conto homónimo,
“O Homem Célebre” (1974), de Miguel Faria Jr, apoiado no conto homónimo,
“Confissões de uma Viúva Moça” (1976), de Adnor Pitanga,
“Iaiá Garcia” (1977), de Geraldo Vietri, baseado no romance homónimo,
“Missa do Galo” (1982), de Nelson Pereira dos Santos, igualmente retirado de um conto homónimo,
“Brás Cubas” (1985), do polémico Júlio Bressane, um grande admirador de Machado de Assis, que, aliás, prepara neste momento uma nova adaptação de um outra obra de Machado de Assis,
“Quincas Borba” (1986), de Roberto Santos,
“A Causa Secreta” (1995), de Sergio Bianchi, baseado no conto homónimo,
“Memórias Póstumas” (2001), de André Klotzel, que irão ver seguidamente, com um elenco desigual de que fazem parte Reginaldo Faria, Sônia Braga, Walmor Chagas, Stepan Nercessian, Petrônio Gontijo, Viétia Rocha.
As duas mais recentes adaptações, “Dom” (2003), de Moacyr Góes, e “A Cartomante” (2004), de Wagner de Assis e Pablo Uranga, ficam muito longe do sofrível.
Finalmente umas rápidas palavras sobre o filme que irão ver já de seguida. “Memórias Póstumas”, de André Klotzel, aceita-se como uma adaptação digna e inteligente do torrencial fabulário de Machado de Assis. Estas “Memórias”, não “de um defunto escritor, mas de um escritor defunto” são objectivamente difíceis de adaptar, já por serem recordadas na primeira pessoa do singular, já por conterem muito de intimista e de secreto que coloca delicados problemas de transposição, já ainda por se expressarem em discursos descontínuos, em estilos diversos, introduzindo constantes rupturas, remetendo para uma ironia fina e subtil. Mas André Klotzel consegue dar uns laivos da arte de Machado, ou, pelo menos, consegue transmitir ao espectador o desejo de ler o original. A reconstituição de época assegura alguma verosimilhança ainda que não raro se fique pelo decorativismo. Falta alguma densidade “vivida” aos “quadros” apresentados. Mais deficiente é a representação, onde apenas Sónia Braga, numa pequena aparição, e Reginaldo Faria, na composição de Brás Cubas, “defunto escritor”, se impõem num elenco não muito entusiasmante. Obviamente que, não sendo um filme desdenhável, não é ainda a obra que Machado de Assis justifica. Mas é, ainda assim, uma das melhores aproximações do universo deste caminhante que atravessou o século XIX brasileiro atravessando almas e palmilhando ruas com uma argúcia de psicólogo e uma atenção voraz de caçador de borboletas. Delicado, mágico, expectante, directo e decisivo na estocada. O Brasil deve-lhe a perpetuação da sua alma, a língua portuguesa coloca-o entre os seus maiores cultores, a Humanidade ficou definitivamente muito mais rica, e mais apetecível, com as suas introspecções e as agudas dissecações das suas personagens. O seu cepticismo é a nossa esperança.
Lauro António, Lisboa,Fundação Gulbenkian, 30 de Setembro de 2008.